Lícia.
Assim que cheguei à mansão dos Collens, Ana já estava a minha espera nos
portões da casa. Fui informada de que os proprietários não estavam em casa, mas
havia dois funcionários a minha total disposição. Antes de entrar na propriedade,
dei uma boa olhada em volta da casa, notando que não havia muito movimento
naquela região. O prédio de uma empresa de computação ficava a uns vinte metros
de distância, mas fora isso, só existia um monte de árvores ao redor,
estrategicamente plantadas para proporcionar privacidade para a mansão.
-- Ana, eu preciso das imagens externas das câmeras de segurança daquele
prédio. Acho que com o seu distintivo você consegue isso mais fácil do que eu.
-- Claro! Sem problemas. Você se importa de entrar aí sozinha enquanto
eu vou atrás disso?
-- Eu já tenho mais de treze anos, mãe. Então não se preocupe comigo.
Ana já conhecia bem o meu humor, por isso apenas sorriu e se afastou em
direção ao prédio. Confirmei minha identificação pelo interfone e aguardei enquanto
alguém vinha me recepcionar. Assim que os portões se abriram de forma
automática, me assustei com o latido de cães ferozes do outro lado. Um
segurança enorme me informou que prenderia os cachorros para que eu pudesse
andar livremente pelos jardins.
Enquanto ele prendia as duas feras, não perdi tempo e caminhei rumo a
casa. Antes de tudo eu queria dar uma boa olhada no quarto do casal. Não
precisava ser nenhum especialista para saber que naquele cômodo tudo era
luxuoso e caro. Comecei meu trabalho analisando cada canto daquele mini
palácio, mas não havia nada fora do comum.
Parei em frente ao cofre que permanecia aberto e reconheci o modelo do
sistema de segurança. Era um dos tops de linha. Mist era muito boa em hackear
sistemas, ou então não trabalhava sozinha. O alarme do cofre era suíço,
considerado um dos melhores do mundo. O resto da segurança eletrônica da casa
era britânico, mas não ficava nada atrás dos concorrentes. Ela mesma conhecia a
reputação inabalável da Companhia Seven de sistemas e segurança. É, com certeza
o responsável por aquele roubo dominava de eletrônica. Por alguma razão, meu
instinto dizia que Ana não encontraria nada nas câmeras e voltaria de mãos
vazias.
Depois de analisar toda a casa, caminhei para o quintal. Comecei a procurar
por algum tipo de pegada ou rastro deixado na grana. Mas não havia nada. Chutei
algumas pedras, conforme minha frustração crescia.
O segurança havia voltado e permaneceu na minha cola durante todo o
tempo em que fiquei observando o vasto quintal. Fiquei surpresa com o fato de
que seu terno continuava impecável depois de prender aqueles dois brutamontes.
Como ela tinha passado pelos cachorros? Eu podia jurar que eles me devorariam
viva se pudessem.
-- Ei, meu chapa! Os cachorros são sempre tão eufóricos como hoje?
-- Sim.
-- Hum... E você sabe se eles ficaram presos ou estavam doentes no dia
do roubo?
-- Não. Mas o guarda da ronda noturna comentou algo sobre os cachorros
estarem quietos demais naquela noite, quase sonolentos. Mas como não viu nada
de estranho na propriedade, ele presumiu apenas que estava tudo calmo e que por
isso os cães estavam descansando.
-- Descansando uma ova!
Eles foram envenenados, isso sim. Eu apostaria as únicas dez libras que
carregava no bolso nessa hipótese. Mist não era cruel o suficiente para matar
os cachorros, então ela deu uma boa dose de sonífero para eles. O suficiente
para que eles ficassem apenas mansos, e não apagassem totalmente. Isso chamaria
a atenção do guarda noturno. Provavelmente colocou tranquilizante em alguns
pedaços de carne, afinal, que bom cachorro recusaria um pedaço suculento de
bife? Lícia podia imaginá-la escondida em cima das árvores, aguardando enquanto
o remédio fazia efeito.
Olhei novamente para dentro da sala e senti uma pontinha de inveja da sala de estar tão bem decorada e cheia de itens caríssimos. Só aquele cômodo pagaria meus 2 milhões de Libras fácil. No meio de tantos utensílios que eu nem sabia decifrar o que era, o quadro emoldurado na parede principal me chamou a atenção. O Sr. Collens estava imponente em sua pose de magnata bem sucedido e um anel feioso brilhava na mão do homem de olhos frios. Me aproximei da pintura e observei a peça de ferro que destoava do restante da pintura. No anel tinha duas iniciais M.F, que eu não tinha a mínima ideia do que significava, mas provavelmente alguma inicial importante para ele. Seria um avô? Alguém nobre? O metal parecia antigo.
Meu telefone tocou voltando minha atenção para a realidade, era a Ana. Só então eu percebi que já era mais tarde
do que eu imaginava. Assim que saí da mansão, encontrei a detetive com cara de
poucos amigos encostada ao capô do seu carro.
-- Antes de qualquer coisa, vamos comer algo. Estou morta de fome! Eu
pago. Nos encontramos no bar do bruxo. Pode ser?
Quem seria eu para negar comida de graça? Apenas concordei e segui seu
carro até o bar ao lado da DP, sempre lotado de policiais.
Enquanto comíamos aquela gororoba que eles insistiam em chamar de
sanduíche, compartilhei com ela todas as informações que eu tinha conseguido
naquele dia, apesar de não nenhuma pista concreta. Ana compartilhava da mesma
frustração que eu. Como eu presumi, não havia nada nas câmeras entre uma e
quatro da manhã daquela noite. As imagens corriam normalmente até 00:59, e no
segundo seguinte o relógio marcava 04:01 da manhã.
Ela era muito melhor do que eu pensava! Eu não sabia se eu deveria
aplaudi-la ou amaldiçoá-la.
-- Fora essa missão, como você está levando tudo, Lícia?
Ana segurou minha mão que estava em cima da mesa.
Eu não sabia lidar muito bem com os sentimentos de Ana. Nunca soube, na
verdade. Eu não queria ser grossa e machuca-la. A verdade é que eu estava mesmo
precisando de um ombro amigo, mas eu não queria que ela confundisse as coisas
novamente entre nós. Por isso afastei minha mão da dela com a desculpa de que
precisava beber um gole de refrigerante.
-- Estou tão ocupada tentando resolver tudo, que ainda não tive tempo de
realmente sentir alguma coisa.
-- Você sabe que meu colo vai estar sempre aqui quando você precisar, certo?
– Disse ela com um sorriso doce.
Ana era bonita, inteligente, competente e, provavelmente, tudo o que
muita mulher queria para si nesse mundo a fora. Às vezes eu tinha vontade de
sossegar o facho e tentar algo sério. Quem sabe com o tempo eu não me apaixonasse
por ela? Ela era capaz de mexer com a imaginação de qualquer um com sua pele
clara e lábios carnudos. Mas a gente descobre conforme envelhece que só sexo
não é o suficiente.
Já em casa, fiz um relatório formal sobre minhas atividades e enviei para
Ronald com cópia para o Sr. Collens. Decidi ver um pouco de TV com minha mãe
que, aparentemente, estava bem. Mas eu sabia que o seu tempo se esgotava a cada
minuto. Deitei em seu colo e me acalmei sentindo o seu carinho enquanto ela
alisava meus cabelos. Eu estava tão cansada que nem percebi quando peguei no
sono.
Acordei no sofá com meu telefone tocando. Quem seria o infeliz me
ligando a essa hora da madrugada?
-- Fala...
Eu não precisava atender ninguém de bom humor às três da manha.
-- Bela adormecida, eu vi o seu e-mail.
-- Fico feliz que você sabia mexer em um computador. Mas você, por acaso,
não sabe também olhar o relógio, seu filho da mãe? Já viu que horas são?
Ele riu do outro lado.
-- Não teria a mesma graça se você não ficasse toda nervosa, Riley! Enfim,
o Sr. Collens ficou demasiadamente satisfeito com as informações que você
conseguiu e quer, além dos dois milhões, lhe pagar bons honorários para que
você fique a inteira disposição de resolver esse caso.
-- Uau. – Foi tudo que consegui dizer.
-- É... Uau! Em um dia você conseguiu fazer bem mais do que o bundão que
estava no caso antes.
-- Obrigada.
-- Não me agradeça! Não estou fazendo elogio nenhum! São apenas os
fatos!
-- OK. Ronald! Posso voltar a dormir agora? Passa minha conta para o
garotão aí e eu vou te mantendo informado!
-- Tá, mas, antes... Ele quer um jantar com você.
-- Comigo? Sai fora! Você me conhece...
-- Com a gente! Sua imbecil!
-- Ah sim. Então tá!
-- Para conhecer melhor as pessoas onde ele está investindo dinheiro e
depositando toda sua confiança. – Recitou ele com ironia.
-- Se eu não soubesse o mentiroso que ele é, até sentiria dó.
-- Eu também. Então até mais, estranha. Vista algo decente! Não quero
você parecendo uma favelada com essa sua jaqueta surrada semana que vem.
-- Vai dar a bunda, Ronald.
Desliguei o telefone, satisfeita. As coisas estavam fluindo. Pelo menos
eu teria dinheiro para comprar os medicamentos e pagar algumas consultas.
No dia seguinte, não tive nenhuma novidade sobre o caso Mist. Minha mãe
estava começando a ficar realmente doente. Por estar com a imunidade baixa, uma
gripe forte tomava conta do seu corpo. Eu sabia que cada dia sem pista alguma,
era um dia a menos para ela. Nos três dias seguintes permaneci assim, madrugadas
inteiras na rua, procurando qualquer informação sobre uma mulher que ninguém sabia
nada sobre.
O sol já estava quase nascendo, e eu dirigia mais uma vez frustrada para
casa, quando decidi que amanhã eu faria diferente. Deixei uma mensagem de voz
para Ana pedindo que ela vasculhasse os arquivos da polícia em busca de alguma
informação sobre os misteriosos roubos de Mist pelo planeta. Eu não seria filha
de uma puta o suficiente para acordá-la a essa hora da manhã. Enquanto Ana
focava nos arquivos policiais, eu passaria o dia afundada na biblioteca Britânica.
Anita.
Após uma semana lendo as mais variadas matérias, eu estava bastante
desanimada. Meus olhos estavam cansados e já tinha dado aquele dia de pesquisas
como finalizado, quando o título de uma matéria me chamou a atenção.
‘‘Maleficus: A sujeira por debaixo dos tapetes da sociedade.’’ Mais que
depressa sentei corretamente da cadeira e comecei a ler rapidamente as linhas
do jornal. O autor falava sobre alguns crimes, há anos sem solução, sempre com
uma marca a ferro deixada para trás. Havia uma compilação de fotos, de várias
partes diferentes do corpo humano, mas todas com a mesma marca. Na continuação
do texto ele dizia que os homens sem fé, como eram conhecidos os membros da
Maleficus, estavam infiltrados nos quatro cantos da Europa. E que a polícia
nunca agia corretamente, pois, qualquer homem em sã consciência, vestido ou não
com uma farda, temia essa organização.
Procurei o nome do jornalista da matéria e anotei na minha agenda antes
de dar o dia de pesquisa por encerrado.
Assim que cheguei em casa, corri para o meu notebook. Sentei no chão da
sala, peguei um pacote de batatas fritas, uma Coca-Cola, e fui pesquisar mais
sobre o tal jornalista. Minha cabeça doía por ficar tantas horas em frente a
tela de um computador, mas eu estava acelerada demais para parar agora. Assim
que digitei o nome de Eduard Brave no campo de busca, minha pagina se encheu
com notícias sobre um jornalista promissor, destemido e... Assassinado. Eu não
acreditava no que meus olhos viam. Cliquei no primeiro link que apareceu e, em
uma pequena nota homenageando o homem que ele tinha sido, estava uma foto do
que parecia um cara feliz. Procurei mais notícias sobre, mas quanto mais eu
lia, mais eu me sentia afundando no chão. Uma das reportagens informava que ele
estava em um dia de trabalho investigativo, andando pelas ruas de Londres,
quando nunca mais voltou vivo para o serviço. Seu corpo fora achado em uma das
margens do Rio Tâmisa, boiando, com vários roxos espalhados, mas não havia nada
sobre marcas a ferro, o que eu achei estranho. Li o nome do jornalista que
tinha trabalhado na matéria sobre sua morte, procurei na internet o telefone
dele e liguei para o número na mesma hora.
-- Alô... – Falou uma voz parecendo ansiosa do outro lado do telefone.
--
Olá, é o Chris Wings?
-- Sim. Quem fala?
-- Aqui é Anita Jensen e eu gostaria de conversar com o senhor...
-- Sobre...?
O homem não estava a fim de cordialidades. Tudo bem por mim.
-- Sobre uma matéria de assassinato que o senhor fez há mais ou menos
sete anos atrás.
Ele ficou em silêncio do outro lado da linha.
-- Sobre outro jornalista, morto e encontrado nas margens do rio...
-- Eu sei de quem você está falando. O que a senhorita quer?
-- Li seu artigo na internet, mas gostaria de mais informações. O senhor
poderia se encontrar para conversarmos?
A voz dele tremeu antes de falar.
-- Melhor não! E não tenho mais informações além do que há no artigo. –
Ele soava nervoso e amedrontado. Eu também estava começando a ficar.
-- Algumas fotos, então...
-- Qual o seu email? Te envio e não precisaremos manter contato.
Desculpe os modos, senhorita, mas esse assunto é um dos que não quero
relembrar. Vi meu amigo morrer por mexer com gente perigosa, não quero ter o
mesmo fim. Tenho uma família para cuidar.
-- Entendo... Não vou dizer seu nome por aí, senhor Wings. Obrigada.
E apesar de não ter mais nenhuma família para cuidar, eu sabia bem o que
era perder quem você ama para a máfia.
Ele desligou o telefone assim que lhe passei meu e-mail, prometendo
enviar as fotos em seguida. Mais uma vez lá estava eu, sozinha, mergulhada em
meus próprios pensamentos. Suspirei. Meu corpo estava moído, então decidi tomar
um banho e esperar enquanto Chris enviava as fotos. Amanhã eu juntaria todas as
informações e iria até a biblioteca novamente.
--
Acordei com um apito abafado e distante tocando em algum ponto próximo a
minha cabeça. Eu estava tão exausta que tinha apagado enquanto esperava os
arquivos. Ainda bocejando, analisei as 20 fotos que me fora enviadas. Cada uma mostrava
ângulos diferentes de um corpo sem vida. O homem estava sujo, com várias marcas
de mordidas, provavelmente dos peixes, e já muito inchado quando o encontraram.
Aumentei as imagens o máximo possível e procurei por detalhes. Os hematomas das
pancadas se misturavam com o tom roxo que o corpo adquire depois da morte. Mas
apesar do estrago que fizeram com aquele pobre moribundo, foi uma pequena marca
em suas mãos me a chamou atenção. Essa foto não estava nos jornais, e agora eu
sabia o porquê. A marca MF estava gravada na palma de ambas as mãos. Aquele
homem, que talvez tivesse uma família, assim como meu pai, pagou com a vida por
se meter com a máfia, publicando coisas que ninguém antes teve a audácia
suficiente.
Juntei todas as informações que havia conseguido e enviei uma cópia para
John. Se qualquer coisa acontecesse comigo, pelo menos ele saberia de tudo.
Horas mais tarde, lá estava eu na biblioteca, relendo o mesmo arquivo do
dia anterior.
Analisei, com cuidado, as datas. Eduard Brave fora assassinado dois
meses após publicar sua reportagem. No artigo que não consegui terminar de ler
ontem, continha mais uma acusação curiosa. Reli varias vezes o mesmo arquivo,
me prendendo especialmente a frase ‘‘a máfia está infiltrada em todo lugar. Na
política, na polícia, nos becos, nas grifes e até nos hospitais. ’’
E então, uma ideia iluminada me atingiu! Percebi que, de algum modo, eu
estava procurando nos lugares errados.
Meu pai fora um médico! Um dos melhores, pelo que eu ouvi dizer.
Provavelmente existiam algumas informações sobre ele nos arquivos do hospital.
Decidi que faria uma visita aos locais que ele tinha trabalhado na Segunda-feira
à procura por qualquer informação sobre Jonas Jensen.
Olhei mais uma vez para a fotografia aberta no notebook que eu tinha levado,
e encarei aquele símbolo que marcara a minha vida para sempre. Eu encontraria
aqueles homens que foram tão cruéis com meus pais e eles me pagariam na mesma
moeda!
Eu estava distante, absorta em pensamentos cruéis, quando, de repente,
percebi um vulto caminhando em minha direção. Ergui a cabeça, levemente
surpresa por não ter conseguido notar a chegada da estranha desde longe, uma
vez que eu sempre estava atenta a tudo em minha volta. Andando em minha direção,
a poucos passos de distância, estava Lícia Riley. A tal detetive
extraordinária.
Nossos olhos se encontraram e eu tive a estranha sensação de já ter
visto aquele olhar antes. Não precisei queimar meus neurônios nem por um
segundo tentando lembrar onde já tinha visto aquele ser, pois assim que reparei
em sua jaqueta velha e surrada, eu soube que ela era a moça que eu vira no
posto logo após o meu último roubo.
Senti uma coisa estranha quando seus olhos, tão firmes, miraram os meus.
As pessoas sempre comentavam sobre meu olhar penetrante, mas ninguém nunca
conseguia me encarar tempo o suficiente. Entretanto, Lícia encarou.
Pela primeira vez na vida, eu não consegui sustentar um olhar. Fiquei
envergonhada pelo meu constrangimento. Minha caneta caiu e eu aproveitei a
deixa para sair daquele transe. Abaixada, observei os pés de Lícia passando por
mim até que ela se sentasse em um dos computadores mais a frente. Tentei me
concentrar no que eu estava fazendo antes da sua chegada, mas assim que abaixei
a cabeça para respirar fundo, percebi que meus braços estavam arrepiados.
‘‘Que diabos era aquilo? ’’
Apertei os olhos, explicando a mim que aquela reação fora apenas um
susto, e que eu deveria voltar ao trabalho! Mas, que trabalho? Eu não conseguia
me lembrar do que eu estava pensando minutos atrás. Pela primeira vez, algo me
atingiu mais forte do que as memórias ruins.
aaaahhh... enfim se encontraram! louca pra saber a reação da Lícia. Estou adorando a história, parabéns!
ResponderExcluirNão sei se você é o/a anônimo que sempre comenta, mas espero que goste dos próximos cap!! <3
Excluir