Lícia.
Não consegui dormir naquela noite. Na manhã seguinte decidi que não
contaria nada para minha mãe até que eu conversasse primeiro com outra pessoa.
Vesti uma roupa e fui para a cozinha. Minha mãe estava sentada olhando pela
janela. Dei um beijo em sua cabeça e peguei um pedaço de pão em cima da mesa.
-- Não vai comer direito?
-- Não, mãe. Preciso sair.
-- Algum serviço?
-- É, um cliente ligou querendo transporte de táxi.
-- Ah, sim. – Ela ficou calada. Abri a geladeira e peguei uma coca no
congelador. -- E por que você sempre leva uma câmera?
Engoli seco. Tentei pensar em alguma história.
-- An, eu gosto de tirar fotos...
-- De homens com mulheres estranhas, como se estivessem fazendo algo
escondido? – Ela começou a sorrir...
-- Mãe... – Eu não tinha o que dizer.
-- Eu já sei o que você é. Só estava esperando que me contasse a
verdade, mas como não tenho mais todo o tempo do mundo... Enfim, ouvi boatos de
que você é a melhor detetive particular da cidade. – Apesar da situação, ela
continuava amorosa como sempre.
Encostei o quadril na pia e abaixei a cabeça.
-- Desculpa por não te contar mãe, mas você também não me contou que
estava doente! Isso nos deixa quite, certo? E não fala assim. Eu vou dar um
jeito nessa situação! Vamos conseguir...
Ela levantou da cadeira que estava sentada, alisou a blusa, se aproximou
de mim e me deu um beijo no rosto antes de ir para o seu quarto.
-- É claro que vamos! Leve sua jaqueta!
-- Tá, mãe.
-- Não chegue tarde!
-- OK.
-- Deixei sanduíches prontos na gaveta debaixo do congelador!
Sai de casa com o coração apertado. Apesar daquele momento tão
verdadeiro, eu mentiria mais uma vez para minha mãe. Eu não investigaria
ninguém naquele dia. Na verdade, eu enfrentaria o meu pai.
Eu sabia onde ele morava, em um
subúrbio, desses que mal tem coleta de lixo. Amarrei os cabelos em um coque e
escondi um spray de pimenta no bolso da jaqueta. Todo cuidado era pouco. Havia
moradores de rua nas calçadas e um carrinho de cachorro quente na esquina. Vi o
senhor que fazia os lanches coçar a virilha e com a mesma mão, virar uma
salsicha na chapa. Deus abençoasse qualquer um que comesse por aquelas bandas.
Mirei o prédio descascado e subi as escadas. Não havia porteiro ou câmeras de
segurança.
Assim que cheguei ao quarto
andar, parei em frente ao penúltimo apartamento do lado esquerdo e mantive o
foco. Bati uma vez. Nada. Uma segunda vez e nada. Antes de bater uma terceira vez,
eu ouvi um grito vindo lá de dentro.
-- Quem é? Já disse que pago o
aluguel mês que vem!
Ele não tinha mudado em nada,
aparentemente. Pelo visto, ele só tinha piorado.
-- Não é o proprietário, pai.
Não foi preciso nenhuma palavra a
mais e a porta se abriu quase que automaticamente. Na minha frente, depois de
tantos anos, estava meu pai, apesar de que pra mim ele era apenas alguém que me
colocou no mundo. Nós tínhamos o mesmo nariz e sorriso, e não tinha um dia
sequer que eu não odiava essas semelhanças. Seus cabelos eram negros e lisos.
Ele tinha envelhecido uns vinte anos nesses últimos oito anos em que não nos víamos.
O cheiro de droga e álcool exalava pelo ar.
-- Olá, Lícia.
-- Alex... – Eu nunca o chamava
de pai.
Ele passou as mãos no cabelo e
ergueu o queixo.
-- O que te trás até essas
bandas? – Seu jeito de falar era nojento.
-- Mamãe. Sua ex-esposa. Lembra?
Ele parou um segundo, passou a
língua nos lábios.
-- Quê tem ela?
Olhei para os lados através do
corredor. Aquele lugar me dava arrepios. Percebendo o meu desconforto, ele me convidou
para entrar no seu apartamento, ou eu deveria chamar aquilo de apertamento? O
local estava sujo, com várias garrafas de bebidas vazias e bitucas de cigarro
espalhadas. Poupei comentários. Ele fechou a porta dizendo:
-- E então...
Tentei não pisar em nenhum corpo
estranho enquanto me virava para encará-lo.
-- Mamãe está doente...
Ele mal me deixou terminar a
frase.
-- E o que eu tenho a ver com
isso?
-- Você por acaso deixou seus
dados no banco de doadores de medula?
-- Acho que sim. – Ele buscou na
memória. – É, acho que sim, alguma vez que fui doar sangue para conseguir um
almoço e acabei me inscrevendo nesse tal banco ai. Por quê?
Ele era asqueroso. Suspirei e
tentei manter a calma na hora de explicar a situação para ele, afinal, eu
estava ali para pedir um favor.
-- Minha mãe está com Câncer.
Leucemia para ser mais clara, e você é o doador compatível mais próximo.
Ele começou a rir e cruzou os
braços.
-- Eu?
Trinquei os dentes de ódio.
-- Sim!
Ele coçou o queixo pensativo.
-- O que eu ganho com isso?
Esse cara estava pedindo um soco
na cara!
-- A honra de salvar uma vida?
-- E o que eu faço com essa tal
‘‘honra’’? Não paga nem uma birita na esquina! Então sinto muito... – E abriu a
porta como se me convidasse a sair. Permaneci onde estava, tentando me segurar,
mas acabei gritando.
-- Ela precisa de você!
-- Sua mãe deixou de ser um
problema meu no dia que me expulsou de casa!
-- Porque você se tornou um lixo
de gente!
Ele se aproximou, riu em minha
cara e eu pude sentir o seu hálito horrível que mesclava álcool barato com
cigarro.
-- Só que agora vocês precisam do
lixo aqui, certo?
Engoli a seco uma bela resposta
mal criada.
-- Por favor...
Ele se afastou e de costas para
mim disse:
-- Quero dinheiro!
-- Dinheiro?
-- É! Claro! Acha que estou bem
nessa situação? Não, não! Quero muito dinheiro!
-- Muito quanto? – Perguntei
desconfiada olhando com nojo para o lugar. Ele me encarou e passou novamente a
língua nos lábios. Depois de um tempo, sorriu com aqueles dentes podres e
disse:
-- Duzentos mil...
Ele disse aquilo como se fosse a
coisa mais simples do mundo ter duzentas mil libras. Engasguei antes de dizer:
-- Você é louco? Duzentos mil?
-- É! – Ele estufou o peito e eu
fechei o punho me preparando para um soco! Eu precisava me controlar. Respirei
fundo umas mil vezes. Eu não tinha esse dinheiro, de maneira alguma, mas
pensaria nisso mais tarde. Agora eu precisava salvar minha mãe de algum jeito.
-- OK. Eu pago!
Ele sorriu mais ainda. Nojento!
-- Tá com a grana aí?
Bicho safado e esperto!
-- Não! Doa primeiro e eu te
pago!
Ele se aproximou, fez um carinho
no meu rosto com suas mãos sujas e disse:
-- Você é esperta, mas seu velho
aqui é mais! Só vou ao hospital assim que o dinheiro estiver em minhas mãos.
-- Seu filho da mãe!
Não consegui conter o xingamento.
Ele merecia. Ainda sorrindo, ele se afastou de mim. Dei uma última olhada no
local e caminhei rumo à porta.
-- Não suma! Vou trazer o
dinheiro o mais rápido possível.
-- Estarei esperando, querida
filha! – Disse ele de um jeito sínico.
Quase vomitei. Caminhei para fora
dali o mais rápido possível. Graças a Deus meu carro estava me esperando do
mesmo jeito que o deixei. Nenhum arrombamento ou arranhão. Entrei dentro dele e
sacudi minhas roupas na esperança de tirar toda aquela sujeira de mim. Deitei a
cabeça no volante e fiquei batendo a cabeça de leve enquanto eu dizia para mim
mesma:
‘‘Eu precisava capturar Mist!’’
Fora isso, onde eu conseguiria
tanta grana assim para pagar além do tratamento, o safado do meu pai? Eu estava
perdida e ferrada! Isso sim!
Peguei o telefone e procurei na
agenda um número, eu começaria resolvendo a vida da minha mãe com uma ligação.
-- Alô, Ronald?
-- É a Riley. – Fui direta. Eu
não gostava dele e nem ele não gostava de mim. Não havia motivos para
cordialidades.
-- O que você quer uma hora
dessas, Riley?
-- Aquilo que você me disse no
bar é verdade? Os Collens estão mesmo dispostos a pagar dois milhões de dólares
para quem pegar a ladra?
Eu não era boa em matemática, mas
eu sabia que dois milhões de dólares convertido em libras seria o suficiente
para pagar o tratamento e a extorsão do meu pai.
-- Mas é claro que é...
-- OK, seu infeliz. Já pode
deixar uma cela pronta para essa bandida. Eu aceito sua proposta.
Anita.
O dia amanheceu e liguei o telão
da sala na bolsa de valores enquanto lia o jornal e tomava meu café da manhã.
Mais uma manhã comum. Depois fui me exercitar no parque perto de casa. Havia
mães brincando com seus filhos e alguns poucos casais apaixonados ao redor.
Aquelas pessoas, aparentemente, felizes com outras pessoas me davam medo. Medo
porque eu não sabia o significado de ser amada. Nem por pai, mãe, irmão ou um alguém
qualquer. Eu sei que soa ingrato falar assim, tendo duas pessoas tão bondosas
do meu lado quanto John e Beatriz, mas... Eles eram uma família, e eu me sentia
apenas uma intrusa abandonada que eles tiveram a bondade de aceitar. Então,
sim, eu me assustava sempre que percebia aquele olhar estranho nos olhos das
pessoas e aquelas expressões como se elas tivessem perdido o controle de si
mesmas. Sinceramente, eu não tinha tanta certeza se perder o controle era tão
bom assim. Quero dizer, eu estava bem. Era capaz de controlar meus sentimentos
e pensamentos perfeitamente, e eu planejava me manter assim até que eu
completasse a vingança dos meus pais. Mas talvez eu acabasse sozinha pelo resto
da minha vida e eu não via nenhum problema nisso.
Decidi dar mais uma volta no
parque só para tirar da cabeça esses pensamentos sentimentais que nada
acrescentavam na minha vida.
Depois de correr, voltei para
casa e tomei outro banho antes do almoço. Para uma pessoa tão disposta a cometer
crimes, eu era bem preguiçosa na hora de fazer comida apenas para mim mesma.
Então quase tudo na geladeira era congelado.
Eu estava degustando uma
deliciosa lasanha de peito de peru congelada, minha ‘‘especialidade’’ como
chefe de cozinha, quando meu celular tocou. Reconheci o número da empresa.
-- Algum problema, Srta. Curry?
-- Eu quem pergunto, Srta.
Jensen. Você sabe que horas são?
-- No meu relógio são 11:00 da
manhã e no seu?
Quase pude vê-la revirando os
olhos do outro lado da linha. Ela odiava meu sarcasmo.
-- Mais uma semana começou!
Segunda-feira. Você não vem trabalhar hoje de novo?
-- Não. – Me limitei a responder.
-- Por quê? – Fiquei em silêncio
tentando entender se eu tinha ouvido corretamente.
Onde já se viu ter que dar
satisfações da minha vida? Eva era uma mulher alta, esbelta com olhos muito
verdes e um cabelo loiro quase platinado que na maioria das vezes estava preso
em um coque charmoso. Ela tinha colhões suficiente para me perguntar coisas
absurdas como essa sem medo da minha falta de paciência, ou más respostas.
Depois de três anos trabalhando juntas eu não sabia se isso era bom ou ruim.
-- Querida, Srta. Curry. Nesse
momento estou em uma sauna em Paris com pelo menos vinte homens e umas
cinquenta mulheres, todos nus, bebendo um fino Cabernet. Ou seja, não vou
trabalhar!
-- Pois saiba que você perdeu
pela segunda vez em duas semanas a reunião com os alemães sobre uma nova
parceria com aquela multiBritânica. Eles acabaram de sair daqui.
Droga! Eu tinha me esquecido
disso.
-- Hum. Remarq...
-- Já remarquei para amanhã às
14:00 horas, assim dá tempo de você pegar um jatinho de volta para Londres,
acordar tarde e comparecer a reunião.
Eva era muito boa, mas eu não ia
confessar isso em voz alta. Meu tom continuou seco.
-- Senti uma certa ironia no seu
tom. Principalmente no final da frase.
-- Estou apenas respondendo a sua
ironia. Você não está em Paris! Você não gosta de vinho e muito menos de
homens. – Acho que ela percebeu que perdeu a linha com aquele ciúme sem
fundamento, pois respirou fundo antes de completar. -- Enfim... Compareça
amanhã a reunião, senhorita Jensen, eu gostaria de receber o meu salário no
começo do mês. Tenha um bom dia.
Ela desligou antes que eu tivesse
a oportunidade de coloca-la em seu devido lugar! Ponto pra ela.
Tudo bem, ela
estava certa, afinal. Eu precisava trabalhar. Mas amanhã eu seria cruel o
suficiente. Por hoje, eu tinha coisas mais importantes para resolver.
Vesti meu sobretudo de couro
branco, feito para encaixar perfeitamente em meu corpo, e caminhei rumo a
biblioteca. Eu tinha um carro, eu sei, mas era tão bom andar naquele tempo
nublado e muita neblina. Eu amava aquele clima. Não o trocaria por nenhuma
praia do mundo. Abri meu guarda-chuva vermelho e me diverti com as poças de
água nas calçadas. Trinta minutos depois eu estava entrando na biblioteca Britânica.
Eu amava aquele lugar. Meus melhores amigos, durante toda a minha vida, até
agora, eram os livros. Amava seus cheiros e formas. Mas hoje eu não estava ali
pelos livros, e sim pelos jornais arquivados.
Caminhei até o final do corredor e
me sentei em frente a um dos computadores. As pastas eram divididas por anos, e
dentro de cada uma havia outras tantas separadas por meses. Nesse fuça-fuça de
pastas, meu dia inteiro foi embora e eu não tinha lido nem um terço da minha
meta. Não havia muita coisa sobre a Máfia, o que me levava a pensar que eles
também estavam infiltrados nas mídias. Eu anotava em um caderno todos os crimes
brutais relacionados com estupro, espancamento, ou marcas a ferro. Eu havia começado
com as noticias de 1981, mas as notícias não tinham mudado muito desde então.
Sempre os mesmos casos absurdos, cheio de furos de reportagem e suposições. Fui
para casa com a horrível sensação de derrota nas costas. Quem seria aquela
máfia e por que, com tantos anos de crimes, não havia nenhuma notícia real
sobre eles?
No dia seguinte, não faltei a
reunião com os alemães e, para me desculpar, levei um bom kit de vinhos finos
para cada um.
-- Eu posso não gostar de vinhos,
Srta. Curry, mas eu entendo deles. Viu, só? Os dois ficaram felizes da vida e
fecharam o negócio. Seu salário vai estar na sua conta no começo do mês.
-- Que bom. – Ela se limitou a
dizer com a expressão séria.
-- Falando em presentinhos, você
por acaso está precisando de um aumento pra poder gastar mais com chocolate,
cabeleireiro ou lingerie? É que você anda com o humor tão ácido que não consigo
pensar em outro jeito de você ficar mais alegrinha a não ser arrumando alguma
doida por aí, ou se entupindo de chocolate.
Eva me encarou com uma raiva
mortal nos olhos. Mas dessa vez eu não deixaria brecha para que ela me
respondesse.
-- Eu estou realmente atrasada
agora, mas qualquer coisa você me manda um e-mail. Tudo bem?
E saí da sala de reuniões antes
que ela me amaldiçoasse ou caísse no choro.
Lícia.
Decidi que começaria a semana
trabalhando sem descanso, então cheguei cedo na DP em plena Segunda-feira.
Ronald já me esperava em sua sala.
-- Ainda usando essa Jaqueta,
Riley? – Ele disse com um sorriso irônico.
-- Pois é... Algumas coisas não
mudam, não é mesmo? Como essa sua cara feia.
Ele tirou os pés de cima da mesa
e sentou corretamente, passando as mãos pelo cabelo e fazendo um bico.
-- Cola logo a bunda nessa
cadeira e vamos ao que interessa.
Sentei e esperei que ele
começasse.
-- Como você já deve saber, um
puta colar foi roubado da casa dos Collens e o cara não está nada feliz com
isso.
-- Homens e seus orgulhos frágeis.
Ele não está pau da vida pelo colar, mas sim porque alguém o enganou dentro da
própria casa.
Ronald arqueou as sobrancelhas
antes de continuar.
-- Ele acha, na verdade, ele tem
certeza de que foi a tal Mist quem fez o roubo. Mas se foi ou não, não importa.
A questão é que ele está oferecendo uma grana preta para quem capturar a moça.
-- Você acha que foi ela? – Ele
pareceu surpreso com a minha pergunta.
-- Talvez... Não há pistas,
marcas ou digitais no local. A noite estava de neblina... Então, pode ser.
-- E se não foi? Se eu
captura-la, mas não ser ela a autora do crime, o que acontece com a grana?
-- Será depositada em sua conta
do mesmo jeito. Já conversei isso com o tiozão lá, pode ficar tranquila.
-- Humm... – Comecei a colocar a
cabeça para pensar. – E o que você ganha com isso no final?
Perguntei preocupada caso tivesse
que dividir o prêmio.
-- Subo de cargo e o outro
detetive fica no chinelo! – Disse ele todo pomposo.
-- Entendo...
-- E então, o que pretende fazer?
-- Quero dar uma olhada na casa
onde aconteceu o roubo e depois vou dar uma pesquisada por aí.
-- OK. Você quem sabe. Vou
colocar a detetive Ana a sua disposição nesse caso. Ela vai te acompanhar na
casa dos Collens. Sei que você não curte o meu pessoal, mas qualquer coisa é
liga aqui na DP, pois todos os ramais já estão sabendo da sua missão.
Assenti com a cabeça e me
levantei para ir embora. Assim que cheguei à porta, virei para Ronald e disse:
-- Você está mais amável do que
eu me lembro. É a idade, vovôzão? – Ele nem era tão velho assim, mas a questão
é que eu adorava brigar com ele.
-- Vai se fuder, Riley!
Fechei a porta rindo antes
começar a seguir os últimos passos de Mist.
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