Capítulo 04 - Do latim de ‘Má-fé’


Anita.

Depois de visitar minha mãe e bancar a boa filha, eu merecia um bom banho de banheira. Eu não tinha ajudantes em casa. Eu não gostava de pessoas ao meu redor, e não arriscaria confiar a alguém minha identidade secreta. Enquanto a banheira se enchia, me olhei no espelho que começava a ficar embaçado.

Por que meus olhos não tinham aquele brilho estranho que os olhos do John tinham? Os meus eram apenas castanhos escuros, grandes e sem vida. Meu corpo era magro e alto, e eu sempre treinava pesado para manter meus braços fortes, minhas pernas rápidas e minha mente afiada. Baguncei o cabelo, eu sempre fazia quando pretendia arrumá-lo. Bagunçá-los era uma mania minha. Eu gostava do ar rebelde que eles ganhavam após serem desalinhados pelos meus dedos. Meus fios não tinham uma cor indefinida, e mamãe sempre perguntava se eu tinha os pintado. Uma hora ele estava castanho claro, em outras, escuro com mechas naturais. Amarrei tudo em um coque e entrei na banheira. 

Fechei os olhos e repassei todas as informações que eu tinha até agora sobre a máfia.

Alguns meses atrás

O roubo seria muito simples. Sentada em um bar lotado, nos distritos de Roma, eu me perguntava que tipo de cara frequenta um local daqueles com um anel avaliado em um milhão de dólares? Observei enquanto ele virava uma dose batizada pelo próprio dono daquela espelunca. Acenei para o meu cúmplice que sorriu de volta. Era sempre inteligente molhar bem as mãos certas.  Me aproximei do balcão e esbarrei ‘‘sem querer’’ no meu alvo . Meu decote estava, propositalmente, exagerado. Ele era um cara gordo, pomposo e meio careca. Daqueles que tenta esconder a calvície penteando o que resta de cabelo para o lado. Eca. Joguei todo o meu charme até que o babaca estivesse na minha. Assim que chegamos ao quarto, o joguei na cama e falei que brincaríamos um pouco. Amarrei suas mãos e lhe vendei os olhos.

-- Está curtindo? – Perguntei.

-- Muito. – Ele disse animado. -- Deixa eu tocar você!

Olhei para a porta no mesmo instante em que outra garota entrava no quarto. Não trocamos uma palavra. Apenas sentei na cadeira em frente à cama e deixei que ela brincasse um pouco com ele, deixando-o animado. Abaixei os olhos para não ver aquela cena nojenta e esperei. Cinco minutos. OK. Já era tempo demais para mim. Acenando com a cabeça, pedi que ela fizesse o que havíamos combinado. Ela sugou seu dedo gorducho, arrancando a peça sem que ele percebesse. Peguei o anel e lhe entreguei outro similar. Pisquei para a garota de programa, deixei seu dinheiro em cima da mesa e saí de fininho rumo ao bar. Tirei algumas notas do bolso e os dedos ágeis do proprietário se prepararam para pegá-las quando reparei na cicatriz em seu punho direito. O MF ainda estava em carne viva, apesar da sujeira em seu braço, como se tivesse sido feito há poucos dias.

-- Bob... – Eu gaguejava. – O que é isso em seu braço?

Ele rapidamente baixou as mangas que, até então, estavam levantadas.

-- Toma um drinque, por conta da casa...

Eu apenas segurei seu braço com força e trinquei os dentes antes de falar.

-- Não vou perguntar de novo. O que é isso no seu braço?

Ele chegou mais perto, engoliu seco e falou sussurrando:

-- É a Máfia... – Seu tom era de puro medo.

-- Que máfia? O que significa esse MF?

-- Maleficus... Do latim de ‘Má-fé’.

Apenas encarei a cicatriz.

-- Como você conseguiu isso? Eu sei que não se consegue uma dessas de graça.

Ele soltou uma risada nervosa que me fez dar um pulo para trás no susto.

-- De graça? Não mesmo! Eu devia grana para eles e não tinha dinheiro para pagar. Um dia eles me pegaram em uma esquina, me deram uma surra bem dada e para que eu não esquecesse a dívida, deixaram essa pequena marca aqui a ferro.

-- E agora?

-- Agora eles usam meu estabelecimento, vezes ou outra, para algum caso sujo deles.
-- Eles pararam de te ameaçar?

Ele se aproximou ainda mais e sussurrou ainda mais baixo.

-- Entenda uma coisa que eu aprendi. Eles estão em todo lugar! Aqui, nesse lixo de mundo e lá para cima, pelas bandas dos ricos. Você não vai querer se meter com eles, gata!

Mas eles já haviam se metido comigo.

Dentro da banheira, meus pensamentos continuavam a mil. Havia três homens naquela noite, isso eu nunca me esqueceria. Um negro e alto segurando meu pai. Outro baixinho e gordo, responsável por estuprar minha mãe. O terceiro, magrelo e com mechas rochas no cabelo, prendeu a mão de ambos para marca-los a ferro.

Solucei. Várias vezes. Repetindo em voz alta que eu não era mais uma menininha e nem estava escondida dentro de um armário. Enquanto saía do banho, me perguntei onde estariam aqueles homens agora? E a pergunta que não me deixava em paz desde aquele dia, o que meus pais haviam feito para que a máfia os matasse daquele jeito?




Lícia.

Assim que chegamos em casa liguei para o oncologista e marquei uma consulta para aquele mesmo dia.

-- Marquei um médico para você, às 17:00 horas, OK?

-- OK.

Fui até a cozinha preparar um café e reparei no jornal que ainda estava sobre a mesa. A matéria sobre Mist estava aberta do mesmo jeito que eu tinha deixado. ‘‘Dois milhões de dólares’’. Era tudo o que eu precisava agora. Mas como conseguir capturar uma mulher que era pior do que fumaça?

Assim que chegamos ao consultório, fomos atendidas. O homem muito ruivo analisava os exames enquanto eu esperava suas palavras ansiosamente. Após alguns minutos ele confirmou o que o outro médico já havia nos dito. Minha mãe estava mesmo com câncer. Felizmente, havia cura, mas precisávamos esperar alguns dias até que a equipe médica encontrasse um doador compatível.

-- Vou passar uma receita e a senhora vai tomando esses medicamentos até lá.

Saímos do consultório caladas. Eu esperava do fundo do meu coração que encontrassem logo um doador e que, principalmente, ele estivesse disposto a nos ajudar. Passamos na farmácia para comprar os remédios e lá tivemos a primeira prova de que tempos difíceis estavam por vir.

-- 250 libras. – Disse o farmacêutico.

-- 250?! – Repetiu minha mãe desesperada.

-- Vamos levar. – Eu disse empurrando os medicamentos para serem empacotados.

-- Não vamos não! – Disse minha mãe puxando eles de volta.

-- Por que não? – Eu já estava meio exaltada.

-- Não temos dinheiro para isso, Lícia!

-- Mãe! – eu estava gritando. Controlei a voz e respirei fundo. – Entende uma coisa! Ou pagamos por isso, ou pagamos seu caixão...

Ela arregalou os olhos e me olhou com os mesmos marejados. Os meus também estavam.

-- Eu preciso de você, mãe... – Disse com todo amor e dor do mundo.

Voltamos para casa com cada uma presa em seus pensamentos. Horas depois, decidi ir trabalhar e a fiz prometer que me ligaria se qualquer coisa acontecesse. Por mais que eu quisesse, eu não poderia ficar em casa parada. Quando reparei onde eu estava, vi que o meu bar favorito nos tempos de polícia estava do outro lado da rua. Decidi entrar e quem sabe reencontrar uma velha amiga.

Assim que entrei no bar percebi que nada havia mudado. A música continuavam as mesmas e o cheiro de tira era perceptível do outro lado da rua. No fundo do bar uma mulher loira estava sentada encarando pensativa sua bebida.

-- Está esperando que o copo lhe diga os números da mega sena, detetive?

-- Ei, Lícia! Quanto tempo. Como andam as coisas?

-- Ah... – Eu estava pronta para dizer, ‘‘não conto nada demais’’, mas as palavras escapuliram antes que eu pudesse detê-las. – Minha mãe está com câncer.

-- Oh. – Ana estendeu seus braços sobre a mesa e segurou minha mão. – Você está bem?

-- Não sei. Acabamos de sair do hospital.

-- Se precisar de qualquer coisa, meu amor, é só me procurar. Você sabe disso!

Ana era uma boa amiga. No fundo eu sabia que ela nutria algum sentimento por mim, e em uma noite de bebedeira acabamos indo para a cama. Mas no dia seguinte lhe expliquei que tudo o que eu sentia por ela era um carinho de amiga. Limpei as lágrimas que teimavam em escorrer pelo meu rosto e estava pronta para pedir um drink quando escutei uma voz conhecia atrás de mim. Virei devagar e vi o homem com ombro largo, mãos enormes e cabelos negros, claramente pintados. Ele era o meu antigo patrão.

-- Olá, Ronald!

Ele se sentou do meu lado.

-- Olá! Como andam as coisas? – Mas ele não me deu tempo de responder. – Pelo visto boas, ouvi coisas maravilhosas sobre seus dotes investigativos.

-- Ah...

Ele continuou.

-- Eu não gosto muito de você, mas tenho que admitir, você era a melhor nesse ramo.

-- Vou pegar isso como um elogio.

-- Pode pegar! Ei, você está por dentro do último roubo capa de revista da tal Mist, certo?

-- Sim. Por quê?

-- Os Collens, donos da casa, vieram procurar a policia, acredita?

-- Humm.

-- E eles estão dispostos a pagar dois milhões para quem pegar a tal Mist. Coloquei um dos veteranos no caso, mas ele está saindo uma merda! Não está a fim de voltar aos velhos tempos e conseguir uma grana extra?

-- Eu trabalharia por conta própria ou teria que trabalhar junto com vocês?

-- Junto com a polícia, claro!

Eu odiava Ronald, na verdade eu odiava o seu departamento inteiro, mas eu não estava em condições de recusar 2 milhões de libras. Engolindo todo o orgulho que eu tinha, eu mal acreditei quando aquelas palavras saíram da minha boca.

-- Acho que podemos conversar melhor a respeito, Ronald.

Saí do bar horas depois e, após algumas doses, eu já estava meio alta. Mais do que bêbada, eu estava emocionalmente cansada.

-- Tem certeza de que não quer dormir lá em casa hoje à noite Lícia?

-- Obrigada, Ana, mas preciso ficar com minha mãe.

Eu estava me despedindo da mulher que havia me acompanhado até o meu carro quando escutei meu celular tocando. Era do hospital. Eles tinham encontrado um doador para minha mãe.

-- O nome dele é Alex Smith Riley. Fiquei curioso de que talvez fosse algum parente seu, então decidi te ligar antes de tentar algum contato. Você conhece alguém com esse nome?

Meu coração acelerou no peito e senti uma raiva sobrenatural tomar conta de mim. Aquilo só podia ser uma piada sem graça do destino! Entre tantas pessoas no mundo, logo aquele cara era o doador mais próximo e compatível com minha mãe? Meus dentes trincaram de raiva.

-- Sim, doutor! Eu conheço esse homem! Ele é o meu pai.




Cap. 3                                                                                                                                        Cap. 5

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