Capítulo 03 - Câncer


Lícia.

Minha agenda para a semana estava cheia. Os primeiros raios de sol entravam pela janela, mas eu continuava deitada. Eu tinha ficado acordada até mais tarde lendo coisas aleatórias sobre Mist, a ladra mais famosa de Londres. Eu tinha certa curiosidade sobre essa história e acompanhava de perto todas as notícias relacionadas. Ninguém sabia ao certo como ela era fisicamente, de onde veio, ou como ela era capaz de planejar roubos tão precisos. Tudo o que a população sabia era que ela só entrava em ação em dias com muita neblina, e daí surgiu o tão famoso codinome. No jornal que ainda repousava em cima da minha mesa, uma das notícias principais era o seu mais recente roubo. Um colar avaliado em milhões de dólares, furtado da casa de um dos fodões da cidade. Todo ladrão deixava rastros, mas Mist era conhecida por uma única marca: Ela não deixava pistas. Levantei da cama e peguei de novo o jornal. Li cada linha pela milésima vez, mas em nada aquilo me acrescentou. A única coisa certa era que com aquela grana toda, ela devia estar no paraíso uma hora dessas. Uns com tanto e outros com tão pouco. Bufei e joguei o jornal na lixeira.

-- Filha, já acordou?

-- Sim, mãe! Já!

Peguei uma blusa larga dentro do guarda roupa e me vesti. Fui arrastando os pés até o banheiro. Escovei os dentes e evitei me olhar no espelho. Não queria minha juba que já estava grande demais e toda amassada. Caminhei até a cozinha e dei um beijo no rosto da minha mãe que preparava café.

-- Vamos ao mercado agora?

-- Claro, mãe. Preciso mesmo comprar uma tesoura.

-- Você vai cortá-los sozinha de novo?

-- Humrum... – Disse distraída passando geleia no pão. Minha mãe estendeu o braço e pegou um chumaço do meu cabelo.

-- Uma cabeleireira cega faria um trabalho muito melhor do que você, Lícia!

Suspirei.

Ela sorriu pra mim com carinho, levantou-se da mesa e foi se arrumar. Dei uma olhada no jornal de hoje e logo na primeira página havia uma notícia que me chamou a atenção. Os Collens estavam dando uma recompensa de dois milhões para quem entregasse vivo ou morto, a ladra que havia arrombado seu cofre. O método, a noite com neblina e a falta de pistas fazia com que as pessoas apostassem que Mist era a responsável pelo roubo. Aquilo me fez arregalar os olhos! Quanta grana! Não podia ser tão difícil de pegá-la assim!

-- Estou pronta! – Minha mãe disse me tirando do transe no qual eu me encontrava.

Apenas peguei as chaves do carro e fomos direto ao supermercado. Mamãe cantarolava uma música qualquer que tocava no rádio, mas meu único pensamento era que se eu capturasse Mist, poderia me aposentar para sempre! Seria sombra e água fresca todos os dias, para mim e minha mãe.
Assim que estacionei e descemos do carro, me afastei para pegar um carrinho e voltei ao seu encontro.

-- Você está muito bonita, mãe. Que foi? Namorado novo?

-- Lícia! – Ela bateu em meu braço, sem graça. Soltei uma risadinha.

-- Qual é! Já está mais que na hora!

-- Está mais que na hora de você me apresentar alguém, isso sim, mocinha. Você só trabalha!

Suspirei de novo. Minha mãe insistia que eu era solitária e estranha demais.

-- Cadê a lista de compras?

A melhor estratégia era sempre essa. Mudar de assunto enquanto ela se empolgava com as compras e eu ia apenas empurrando o carrinho lentamente. Minha mãe era uma mulher bonita, mas sofrera muito nas mãos no meu pai. Eu era pequena, mas essas coisas marcam a gente pra sempre. Meu pai bebia demais e usava todo o nosso dinheiro com outras mulheres e álcool. Ainda me lembro do dia em que ela o expulsou de casa, após uma briga feia. Minha mãe sempre diz que não nasceu para apanhar de ninguém, muito menos de homem, e tenho quase certeza que puxei esse jeito orgulhoso de ser dela. Ela era tudo o que eu tinha e isso me bastava. Depois que ele foi embora, ela nunca mais se envolveu seriamente com outra pessoa. Às vezes ela bebia e chorava muito, assim, do nada. Esses dias eram difíceis, mas isso não diminuía o meu amor por ela.

Eu estava andando pelo supermercado procurando a tesoura para cortar meu cabelo, absorta em meus pensamentos, quando escutei um barulho. Ergui os olhos, pronta para rir, pensando que mamãe tivesse derrubado algo no chão, mas, para o meu espanto, era ela quem estava no chão.

-- Mãe?

Corri até ela. Ela estava desmaiada e as pessoas começavam a se aglomerar a nossa volta.

-- Me ajudem, por favor!

Alguém entre a multidão gritou pelo segurança.

-- Mãe? Acorda!

Eu a sacudia. Um homem se agachou ao nosso lado e colocou a mão no pescoço dela.

-- Ela está viva. Apenas desmaiada. Os médicos estão a caminho.

Isso eu pude perceber. Meus anos de treinamento na policia serviram para pelo menos reconhecer os batimentos de uma pessoa. Peguei a cabeça dela e coloquei sobre minhas pernas, ainda tentando acordá-la. Comecei a tremer e tentei manter os meus lábios parados, mas meus dentes insistiam em se chocar uns contra os outros dentro da minha boca de nervoso. Minutos depois e dois homens com uma maca, vestidos de branco, chegaram. Colocaram minha mãe deitada e saíram a carregando mercado a fora. Me levantei em um pulo e corri de encontro a eles, abandonando o carrinho cheio de compras no mesmo lugar que estava.

-- Você é o que dela?

-- Filha.

-- OK. Pode entrar e permanecer com ela.

Pulei dentro da ambulância e saímos, disparados, rua a fora. A sirene alta do lado de fora me incomodava, mas aquilo era o que menos importava nesse momento. O hospital não era muito longe, mas o transito nesse horário era um inferno, o que dificultava a passagem. Não soltei a mão da minha mãe um segundo sequer, nem mesmo enquanto a ambulância chacoalhava. Assim que chegamos, eles correram com ela para alguma sala de emergia e eu fui deixada do lado de fora. Permaneci sozinha no meio daquele corredor branco e estranho. A única coisa que me restava agora era sentar e esperar.
Uma enfermeira bondosa, mas apressada, me chamou e pediu os dados da minha mãe. Confirmei todos e ela pediu que eu aguardasse mais um tempo. OK. Eu aguardaria, mas quanto mais tempo? Minutos se transformaram em dias e sempre que alguém de branco aparecia, meu coração disparava. Mas era sempre alarme falso. Apenas uma hora depois um senhor veio ao meu encontro.

-- Você é a filha da Dona Maria Riley?

-- Sim, senhor.

-- Sinto muito a espera, mas, infelizmente, o caso da sua mãe não é algo tão simples quanto um desmaio.

Direto ele, não? Me lembrei de todas as vezes que eu tive que dar notícias ruins para meus clientes e senti o gosto amargo da informalidade. Poxa, eu seria mais legal da próxima vez.

-- Como assim, doutor?

-- Sua mãe está com câncer.

Meu cérebro não conseguiu assimilar a notícia.

-- Câncer? – Eu estava incrédula. Meu olhar ficou perdido e minha vista ficou borrada.

-- Sim. Você não sabia? – Disse ele em um tom disfarçado de acusação.

-- Por quê? Deveria?

Ele suspirou.

-- Você não a notou reclamando de dores pelo corpo? Imunidade baixa? Sangramentos?

Meu Deus! Eu me senti uma péssima filha, pois tentei puxar da memória todas essas informações, mas não consegui me lembrar de nenhuma. Eu estava sempre tão afundada em meu trabalho que não percebi o que acontecia dentro da minha própria casa. Balancei a cabeça, envergonhada, negando.

-- Bom, sua mãe está com câncer.

-- E agora? – Olhei para ele com os olhos desesperados, como se ele pudesse me salvar dessa.

-- Não é um câncer simples. É um LMA.

-- LMA? – Eu não era médica e não tinha a mínima ideia do que aquele homem estava falando.

-- Leucemia mieloide aguda. LMA. – Ele me encarou como se esperasse que eu dissesse, ‘‘Ah sim, entendo tudo, perfeitamente!’’, mas eu continuei com a cara de quem não estava entendendo nada, então ele continuou. -- É um câncer que começa dentro da medula óssea, tecido mole que fica dentro dos ossos e ajuda a formar células sanguíneas. O câncer se desenvolve nas células que, normalmente, formariam glóbulos brancos. Aguda significa que a doença se desenvolve rapidamente. 

Ele despejou tudo de uma vez.

-- Hummm...

Eu estava em choque e assustada. Minha mente ainda estava em modo lento. Ele continuou.

-- Ela deve visitar um oncologista o mais rápido possível.

-- Claro. – eu concordei, sem nem saber direito o que eu estava falando. Ele assentiu com a cabeça e virou as costas, caminhando de volta para dentro das enfermarias. Tentei voltar à realidade.

-- Doutor? – Gritei. Ele se virou e me olhou. – Não há nada que vocês possam fazer aqui?

-- Não. Sinto muito. O tratamento é longo, lento, específico e muito caro.

Suspirei derrotada.

-- Posso vê-la?

-- Claro. Uma enfermeira irá levá-la até ela em alguns minutos.

-- Obrigada. – disse cabisbaixa. Ele apenas acenou com a cabeça de novo antes de voltar ao seu trabalho.

Permaneci parada no mesmo local e um filme de toda minha vida começou a passar pela minha cabeça. ‘‘Câncer? Mas por que, meu Deus?’’. Minha mãe estava doente eu não tinha a menor ideia disso. Eu estava me sentindo além de perdida e desesperada, um lixo. Uma enfermeira apareceu no final do corredor e chamou meu nome. Assim que entrei no quarto avistei minha mãe deitada, presa a aquelas máquinas monitorando seus batimentos. Me aproximei e segurei sua mão. Ela tentou sorrir para mim.

-- Não adianta vir com essa carinha, mãe! Por que escondeu isso de mim?

-- Eu não sabia que estava com câncer!

-- Mas você não vem sentindo dores e sei lá mais o quê? O doutor me falou!

-- Sim.

-- Então por que não me disse? – Disse em um tom mesclado entre a raiva e o choro.

-- Não queria ser um peso maior, além do que já sou.

-- Para com isso, mãe! – Rebati. – Se não for eu por você e você por mim, quem será por nós?

Ela pegou minha mão e levou até seu rosto.

-- Você vai ficar boa, mãe. Vamos cuidar de você!



Anita.

O dia estava bonito, acinzentado como eu tanto gostava. Eu estava do lado de fora, sentada na minha cadeira favorita, observando os pássaros quando escutei John chegar de mansinho.

-- Sei que está atrás de mim.

-- Droga! Nunca dá para assustar você!

-- Troque esses sapatos e quem sabe você consegue na próxima!

-- Ei, eu amo meus tênis.

Apenas lhe lancei um sorriso enquanto o observava.

-- Que olhar é esse?

-- Estou apaixonado. – Disse ele animado.

-- Fico feliz por você! – Eu até tentei parecer contente, mas minha voz soava morna.

-- Fica nada. – Disse ele com um sorriso triste. – Você devia dar uma chance para o amor, Anita.

-- Eu não! Pra ficar com essa cara de bobo que nem você?

-- Você fala isso porque nunca se apaixonou. Devia dar uma chance para Eva. Ela gosta de você.

-- Eva é nossa secretária. Isso seria assédio moral.

-- Eu não acredito que ela faria uma coisa dessas. Sem falar que ela cuida mais da sua parte da empresa do que você.

A companhia Seven era referência em se tratando de sistemas de segurança e programas de gestão empresarial. Estávamos espalhados por todo o globo e isso nos dava uma vantagem imensurável na hora de invadir a casa dos nossos próprios consumidores mais privilegiados. Além disso, investíamos em telecomunicação, internet e novas tecnologias.

Cortei esse assunto antes que começasse o mesmo blábláblá de sempre.

-- Não enche! E eu pago um salário absurdo para que ela trabalhe direito.

-- OK. Não adianta discutir com você mesmo. Me diz, o que você fez com seus dez milhões?

-- Já investi, e agora vou me virando com os lucros.

-- Se virando? – Disse ele rindo.

-- É... Você sabe... Viver como der com essa merreca. – Disse dando uma piscadinha.

-- Não desistiu mesmo da ideia?

-- Não! Amanhã começo.

-- Já sabe por onde começar?

-- Sim. Pela biblioteca Britânica.

-- O que você vai fazer lá? Acha mesmo que pode achar algo nos livros sobre a máfia?

-- Não. Mas vou passar o dia lendo os jornais antigos, pelo menos os dos últimos trinta anos, sobre os casos de assassinatos que não foram solucionados.

-- Últimos trinta anos? Uau! – Ele soltou um assobio. – Boa sorte!

-- Obrigada. – Porque minha voz tinha sempre que soar tão robotizada?

-- Eu te ajudaria se eu não fosse passar alguns dias em Paris. Uma pequena lua de mel com minha amada.

-- Parabéns, garotão! Aproveita!

-- Eu vou. – Disse ele bebendo mais um gole da sua Coca. Ele deu um pulo, como se lembrasse de algo importante e disse: – Ei, você viu que estão oferecendo dois milhões pela sua cabeça?

-- Eu vi! Que insulto!

-- Pois é! Só dois milhões? Você já valeu mais, maninha!

-- Há Há Há Há! Idiota!

-- E você ficou sabendo pelo boca a boca que há uma nova detetive particular fodona na cidade?

-- Para começo de conversa, ela não é nova aqui. Ela só caiu na boca do povo recentemente.
Ele engoliu a Coca com um sorriso.

-- Pelo visto você já está sabendo...

-- Escuta... Você não tem nada de mais importante para fazer, não?

-- Tenho! E já estou indo! Mamãe disse que você não passou lá essa semana! Ela está uma fera!
Sorri com carinho.

-- Obrigada pelo recado.

Ele se levantou e ficou me olhando um tempo.

-- Não te preocupa?

-- Não realmente. Sabe que ela nunca poderia me pegar... Nunca deixamos pistas. Já dei uma estudada por alto no perfil da moça e não me colocou medo. Ela é peixe pequeno. Não se preocupe. – Disse pensativa, mas John começou a rir.

-- Não estou falando disso, sua exibida! Não te preocupada mamãe estar uma fera com você? Se eu fosse você, iria lá rapidinho, ou ela vai te deixar sem bolo de cenoura com cobertura de chocolate!

-- Sério? – Fiz cara de assustada!

-- Sério!

-- Bom... – Disse me levantando. – Então vou me trocar, pois isso sim me preocupa.

Saí rumo ao meu quarto para me arrumar e ir visitar a minha ‘‘mãe’’. De fato, aquela detetive não me assustava. Ela tinha resolvido um ou dois casos complicados e caído nas graças do povo, mas eu já tinha feito muito mais que um ou dois roubos. O que eu preferi não comentar com meu irmão foi que ela não me botava medo, mas me impressionava. John havia me ensinado como penetrar o sistema da polícia sem deixar rastros. Confesso que fiquei alguns minutos olhando sua foto, me perguntando em que lugar eu já tinha visto aquele olhar. Seu rosto era marcante e seus olhos tinham uma cor indefinida. Meio verdes com tons de cinza. Lícia Riley, definitivamente, chamava a atenção.





Cap. 2                                                                                                                                              Cap. 4

2 comentários:

  1. Jessy, eu acompanhava suas histórias no querido abcles, e fiquei muito triste quando ele saiu do ar e não tive como terminar de ler essa incrível história. Estou feliz que você esteja postando aqui. Um grande abraço

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  2. Amei você ter voltado a posta Limite Mortal,pois eu amo essa história

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