Lícia.
Minha agenda para a semana estava cheia. Os primeiros raios de sol
entravam pela janela, mas eu continuava deitada. Eu tinha ficado acordada até
mais tarde lendo coisas aleatórias sobre Mist, a ladra mais famosa de Londres.
Eu tinha certa curiosidade sobre essa história e acompanhava de perto todas as
notícias relacionadas. Ninguém sabia ao certo como ela era fisicamente, de onde
veio, ou como ela era capaz de planejar roubos tão precisos. Tudo o que a
população sabia era que ela só entrava em ação em dias com muita neblina, e daí
surgiu o tão famoso codinome. No jornal que ainda repousava em cima da minha
mesa, uma das notícias principais era o seu mais recente roubo. Um colar
avaliado em milhões de dólares, furtado da casa de um dos fodões da cidade.
Todo ladrão deixava rastros, mas Mist era conhecida por uma única marca: Ela
não deixava pistas. Levantei da cama e peguei de novo o jornal. Li cada linha
pela milésima vez, mas em nada aquilo me acrescentou. A única coisa certa era
que com aquela grana toda, ela devia estar no paraíso uma hora dessas. Uns com
tanto e outros com tão pouco. Bufei e joguei o jornal na lixeira.
-- Filha, já acordou?
-- Sim, mãe! Já!
Peguei uma blusa larga dentro do guarda roupa e me vesti. Fui arrastando
os pés até o banheiro. Escovei os dentes e evitei me olhar no espelho. Não
queria minha juba que já estava grande demais e toda amassada. Caminhei até a
cozinha e dei um beijo no rosto da minha mãe que preparava café.
-- Vamos ao mercado agora?
-- Claro, mãe. Preciso mesmo comprar uma tesoura.
-- Você vai cortá-los sozinha de novo?
-- Humrum... – Disse distraída passando geleia no pão. Minha mãe estendeu
o braço e pegou um chumaço do meu cabelo.
-- Uma cabeleireira cega faria um trabalho muito melhor do que você,
Lícia!
Suspirei.
Ela sorriu pra mim com carinho, levantou-se da mesa e foi se arrumar. Dei
uma olhada no jornal de hoje e logo na primeira página havia uma notícia que me
chamou a atenção. Os Collens estavam dando uma recompensa de dois milhões para
quem entregasse vivo ou morto, a ladra que havia arrombado seu cofre. O método, a noite com neblina e a falta de pistas fazia com que as pessoas apostassem que Mist era a responsável pelo roubo. Aquilo me
fez arregalar os olhos! Quanta grana! Não podia ser tão difícil
de pegá-la assim!
-- Estou pronta! – Minha mãe disse me tirando do transe no qual eu me
encontrava.
Apenas peguei as chaves do carro e fomos direto ao supermercado. Mamãe
cantarolava uma música qualquer que tocava no rádio, mas meu único pensamento
era que se eu capturasse Mist, poderia me aposentar para sempre! Seria sombra e
água fresca todos os dias, para mim e minha mãe.
Assim que estacionei e descemos do carro, me afastei para pegar um
carrinho e voltei ao seu encontro.
-- Você está muito bonita, mãe. Que foi? Namorado novo?
-- Lícia! – Ela bateu em meu braço, sem graça. Soltei uma risadinha.
-- Qual é! Já está mais que na hora!
-- Está mais que na hora de você me apresentar alguém, isso sim,
mocinha. Você só trabalha!
Suspirei de novo. Minha mãe insistia que eu era solitária e estranha
demais.
-- Cadê a lista de compras?
A melhor estratégia era sempre essa. Mudar de assunto enquanto ela se
empolgava com as compras e eu ia apenas empurrando o carrinho lentamente. Minha
mãe era uma mulher bonita, mas sofrera muito nas mãos no meu pai. Eu era
pequena, mas essas coisas marcam a gente pra sempre. Meu pai bebia demais e
usava todo o nosso dinheiro com outras mulheres e álcool. Ainda me lembro do
dia em que ela o expulsou de casa, após uma briga feia. Minha mãe sempre diz
que não nasceu para apanhar de ninguém, muito menos de homem, e tenho quase
certeza que puxei esse jeito orgulhoso de ser dela. Ela era tudo o que eu tinha
e isso me bastava. Depois que ele foi embora, ela nunca mais se envolveu
seriamente com outra pessoa. Às vezes ela bebia e chorava muito, assim, do
nada. Esses dias eram difíceis, mas isso não diminuía o meu amor por ela.
Eu estava andando pelo supermercado procurando a tesoura para cortar meu cabelo, absorta em meus pensamentos, quando escutei um barulho. Ergui os olhos, pronta para rir, pensando que mamãe tivesse derrubado algo no chão, mas, para o meu espanto, era ela quem estava no chão.
-- Mãe?
Corri até ela. Ela estava desmaiada e as pessoas começavam a se
aglomerar a nossa volta.
-- Me ajudem, por favor!
Alguém entre a multidão gritou pelo segurança.
-- Mãe? Acorda!
Eu a sacudia. Um homem se agachou ao nosso lado e colocou a mão no
pescoço dela.
-- Ela está viva. Apenas desmaiada. Os médicos estão a caminho.
Isso eu pude perceber. Meus anos de treinamento na policia serviram para
pelo menos reconhecer os batimentos de uma pessoa. Peguei a cabeça dela e
coloquei sobre minhas pernas, ainda tentando acordá-la. Comecei a tremer e
tentei manter os meus lábios parados, mas meus dentes insistiam em se chocar
uns contra os outros dentro da minha boca de nervoso. Minutos depois e dois
homens com uma maca, vestidos de branco, chegaram. Colocaram minha mãe deitada
e saíram a carregando mercado a fora. Me levantei em um pulo e corri de
encontro a eles, abandonando o carrinho cheio de compras no mesmo lugar que
estava.
-- Você é o que dela?
-- Filha.
-- OK. Pode entrar e permanecer com ela.
Pulei dentro da ambulância e saímos, disparados, rua a fora. A sirene
alta do lado de fora me incomodava, mas aquilo era o que menos importava nesse
momento. O hospital não era muito longe, mas o transito nesse horário era um
inferno, o que dificultava a passagem. Não soltei a mão da minha mãe um segundo
sequer, nem mesmo enquanto a ambulância chacoalhava. Assim que chegamos, eles
correram com ela para alguma sala de emergia e eu fui deixada do lado de fora.
Permaneci sozinha no meio daquele corredor branco e estranho. A única coisa que
me restava agora era sentar e esperar.
Uma enfermeira bondosa, mas apressada, me chamou e pediu os dados da
minha mãe. Confirmei todos e ela pediu que eu aguardasse mais um tempo. OK. Eu
aguardaria, mas quanto mais tempo? Minutos se transformaram em dias e sempre
que alguém de branco aparecia, meu coração disparava. Mas era sempre alarme
falso. Apenas uma hora depois um senhor veio ao meu encontro.
-- Você é a filha da Dona Maria Riley?
-- Sim, senhor.
-- Sinto muito a espera, mas, infelizmente, o caso da sua mãe não é algo
tão simples quanto um desmaio.
Direto ele, não? Me lembrei de todas as vezes que eu tive que dar
notícias ruins para meus clientes e senti o gosto amargo da informalidade.
Poxa, eu seria mais legal da próxima vez.
-- Como assim, doutor?
-- Sua mãe está com câncer.
Meu cérebro não conseguiu assimilar a notícia.
-- Câncer? – Eu estava incrédula. Meu olhar ficou perdido e minha vista
ficou borrada.
-- Sim. Você não sabia? – Disse ele em um tom disfarçado de acusação.
-- Por quê? Deveria?
Ele suspirou.
-- Você não a notou reclamando de dores pelo corpo? Imunidade baixa?
Sangramentos?
Meu Deus! Eu me senti uma péssima filha, pois tentei puxar da memória
todas essas informações, mas não consegui me lembrar de nenhuma. Eu estava
sempre tão afundada em meu trabalho que não percebi o que acontecia dentro da
minha própria casa. Balancei a cabeça, envergonhada, negando.
-- Bom, sua mãe está com câncer.
-- E agora? – Olhei para ele com os olhos desesperados, como se ele
pudesse me salvar dessa.
-- Não é um câncer simples. É um LMA.
-- LMA? – Eu não era médica e não tinha a mínima ideia do que aquele
homem estava falando.
-- Leucemia
mieloide aguda. LMA. – Ele me encarou como se esperasse que eu dissesse, ‘‘Ah
sim, entendo tudo, perfeitamente!’’, mas eu continuei com a cara de quem não
estava entendendo nada, então ele continuou. -- É um câncer que começa dentro
da medula óssea, tecido mole que fica dentro dos ossos e ajuda a formar células
sanguíneas. O câncer se desenvolve nas células que, normalmente, formariam
glóbulos brancos. Aguda significa que a doença se desenvolve rapidamente.
Ele despejou
tudo de uma vez.
-- Hummm...
Eu estava em
choque e assustada. Minha mente ainda estava em modo lento. Ele continuou.
-- Ela deve visitar
um oncologista o mais rápido possível.
-- Claro. – eu
concordei, sem nem saber direito o que eu estava falando. Ele assentiu com a
cabeça e virou as costas, caminhando de volta para dentro das enfermarias.
Tentei voltar à realidade.
-- Doutor? –
Gritei. Ele se virou e me olhou. – Não há nada que vocês possam fazer aqui?
-- Não. Sinto
muito. O tratamento é longo, lento, específico e muito caro.
Suspirei derrotada.
-- Posso
vê-la?
-- Claro. Uma
enfermeira irá levá-la até ela em alguns minutos.
-- Obrigada. –
disse cabisbaixa. Ele apenas acenou com a cabeça de novo antes de voltar ao seu
trabalho.
Permaneci
parada no mesmo local e um filme de toda minha vida começou a passar pela minha
cabeça. ‘‘Câncer? Mas por que, meu Deus?’’. Minha mãe estava doente eu não
tinha a menor ideia disso. Eu estava me sentindo além de perdida e desesperada,
um lixo. Uma enfermeira apareceu no final do corredor e chamou meu nome. Assim
que entrei no quarto avistei minha mãe deitada, presa a aquelas máquinas
monitorando seus batimentos. Me aproximei e segurei sua mão. Ela tentou sorrir
para mim.
-- Não adianta
vir com essa carinha, mãe! Por que escondeu isso de mim?
-- Eu não
sabia que estava com câncer!
-- Mas você
não vem sentindo dores e sei lá mais o quê? O doutor me falou!
-- Sim.
-- Então por que
não me disse? – Disse em um tom mesclado entre a raiva e o choro.
-- Não queria
ser um peso maior, além do que já sou.
-- Para com
isso, mãe! – Rebati. – Se não for eu por você e você por mim, quem será por
nós?
Ela pegou
minha mão e levou até seu rosto.
-- Você vai
ficar boa, mãe. Vamos cuidar de você!
Anita.
O dia estava
bonito, acinzentado como eu tanto gostava. Eu estava do lado de fora, sentada
na minha cadeira favorita, observando os pássaros quando escutei John chegar de
mansinho.
-- Sei que
está atrás de mim.
-- Droga!
Nunca dá para assustar você!
-- Troque
esses sapatos e quem sabe você consegue na próxima!
-- Ei, eu amo
meus tênis.
Apenas lhe
lancei um sorriso enquanto o observava.
-- Que olhar é
esse?
-- Estou
apaixonado. – Disse ele animado.
-- Fico feliz
por você! – Eu até tentei parecer contente, mas minha voz soava morna.
-- Fica nada.
– Disse ele com um sorriso triste. – Você devia dar uma chance para o amor,
Anita.
-- Eu não! Pra
ficar com essa cara de bobo que nem você?
-- Você fala isso
porque nunca se apaixonou. Devia dar uma chance para Eva. Ela gosta de você.
-- Eva é nossa
secretária. Isso seria assédio moral.
-- Eu não
acredito que ela faria uma coisa dessas. Sem falar que ela cuida mais da sua
parte da empresa do que você.
A companhia
Seven era referência em se tratando de sistemas de segurança e programas de
gestão empresarial. Estávamos espalhados por todo o globo e isso nos dava uma
vantagem imensurável na hora de invadir a casa dos nossos próprios consumidores
mais privilegiados. Além disso, investíamos em telecomunicação, internet e
novas tecnologias.
Cortei esse
assunto antes que começasse o mesmo blábláblá de sempre.
-- Não enche!
E eu pago um salário absurdo para que ela trabalhe direito.
-- OK. Não
adianta discutir com você mesmo. Me diz, o que você fez com seus dez milhões?
-- Já investi,
e agora vou me virando com os lucros.
-- Se virando?
– Disse ele rindo.
-- É... Você
sabe... Viver como der com essa merreca. – Disse dando uma piscadinha.
-- Não
desistiu mesmo da ideia?
-- Não! Amanhã
começo.
-- Já sabe por
onde começar?
-- Sim. Pela
biblioteca Britânica.
-- O que você
vai fazer lá? Acha mesmo que pode achar algo nos livros sobre a máfia?
-- Não. Mas
vou passar o dia lendo os jornais antigos, pelo menos os dos últimos trinta
anos, sobre os casos de assassinatos que não foram solucionados.
-- Últimos
trinta anos? Uau! – Ele soltou um assobio. – Boa sorte!
-- Obrigada. –
Porque minha voz tinha sempre que soar tão robotizada?
-- Eu te
ajudaria se eu não fosse passar alguns dias em Paris. Uma pequena lua de mel com
minha amada.
-- Parabéns,
garotão! Aproveita!
-- Eu vou. –
Disse ele bebendo mais um gole da sua Coca. Ele deu um pulo, como se lembrasse
de algo importante e disse: – Ei, você viu que estão oferecendo dois milhões
pela sua cabeça?
-- Eu vi! Que
insulto!
-- Pois é! Só
dois milhões? Você já valeu mais, maninha!
-- Há Há Há
Há! Idiota!
-- E você
ficou sabendo pelo boca a boca que há uma nova detetive particular fodona na
cidade?
-- Para começo
de conversa, ela não é nova aqui. Ela só caiu na boca do povo recentemente.
Ele engoliu a
Coca com um sorriso.
-- Pelo visto
você já está sabendo...
-- Escuta...
Você não tem nada de mais importante para fazer, não?
-- Tenho! E já
estou indo! Mamãe disse que você não passou lá essa semana! Ela está uma fera!
Sorri com
carinho.
-- Obrigada
pelo recado.
Ele se
levantou e ficou me olhando um tempo.
-- Não te
preocupa?
-- Não
realmente. Sabe que ela nunca poderia me pegar... Nunca deixamos pistas. Já dei
uma estudada por alto no perfil da moça e não me colocou medo. Ela é peixe
pequeno. Não se preocupe. – Disse pensativa, mas John começou a rir.
-- Não estou
falando disso, sua exibida! Não te preocupada mamãe estar uma fera com você? Se
eu fosse você, iria lá rapidinho, ou ela vai te deixar sem bolo de cenoura com
cobertura de chocolate!
-- Sério? –
Fiz cara de assustada!
-- Sério!
-- Bom... –
Disse me levantando. – Então vou me trocar, pois isso sim me preocupa.
Saí rumo ao
meu quarto para me arrumar e ir visitar a minha ‘‘mãe’’. De fato, aquela detetive
não me assustava. Ela tinha resolvido um ou dois casos complicados e caído nas
graças do povo, mas eu já tinha feito muito mais que um ou dois roubos. O que
eu preferi não comentar com meu irmão foi que ela não me botava medo, mas me
impressionava. John havia me ensinado como penetrar o sistema da polícia sem
deixar rastros. Confesso que fiquei alguns minutos olhando sua foto, me
perguntando em que lugar eu já tinha visto aquele olhar. Seu rosto era marcante
e seus olhos tinham uma cor indefinida. Meio verdes com tons de cinza. Lícia
Riley, definitivamente, chamava a atenção.
Jessy, eu acompanhava suas histórias no querido abcles, e fiquei muito triste quando ele saiu do ar e não tive como terminar de ler essa incrível história. Estou feliz que você esteja postando aqui. Um grande abraço
ResponderExcluirAmei você ter voltado a posta Limite Mortal,pois eu amo essa história
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