Anita.
Londres era uma cidade fascinante e cheia de contrastes. Os edifícios
modernos disputavam espaço com as construções antigas enquanto as luzes da cidade
tentavam prevalecer sobre a forte neblina daquela noite. Indiferentes ao clima
lá fora, a maioria das pessoas dormiam quentinhas em suas camas, aguardando por
mais um dia de trabalho que viria com o amanhecer. Eu não me sentia sonolenta,
e apesar de estar pendurada no 23° andar há mais de uma hora, eu também não me
sentia cansada. O vento forte vindo do norte fez as os cabos que me sustentavam
balançarem. Tão pouco senti medo. Eu já estava acostumada. Apenas firmei ainda
mais as mãos na corda e continuei encarando lá embaixo. Na noite escura e
coberta pela névoa, eu não podia ser notada. Minhas vestes pretas não deixavam
nenhum pedaço de pele à vista. Meu sobretudo de couro, muito maior do que meu
número verdadeiro, estava em uma bolsa, pronto para disfarçar minhas curvas
femininas quando necessário. Por debaixo das roupas apertadas eu usava
enchimentos. O principal motivo era o disfarce na tentativa de dificultar um
pouco mais as coisas para os tiras. Eu sempre ‘‘trabalhava’’ nos dias nublados,
e talvez por isso eu tenha ganhado o codinome ‘‘Mist’’. Sorri orgulhosa, eu
adorava aquele nome.
Mais um assalto, mais uma noite mal dormida. Eu ainda tinha pesadelos com
aquela madrugada na qual vi meus pais serem assassinados. Às vezes, se tudo
tivesse acontecido de forma diferente, eu não estaria no alto desse prédio, pronta
para mais um roubo. Mas a vida não era feita de talvez, e eu precisava focar no
agora. Soltei o cabo para que eu pudesse
descer mais alguns andares. Dentro do complexo tudo estava escuro e calado. Mas
não era o prédio de uma das maiores empresas de computadores que me interessava,
era a mansão logo abaixo que pertencia a um homem muito rico. Ele e sua esposa
tinham partido para uma viagem ao Caribe, na tentativa de aproveitar um pouco
do sol que Londres não tinha nessa época do ano. As joias permaneceram
escondidas em um cofre e o sistema de segurança da casa era um dos melhores do
mercado, mas eu adorava um bom desafio.
Havia dois cachorros de guarda, fortes como touros, andando livremente
pelo jardim. Um guarda noturno visitava a casa de uma em uma hora, e ele
apareceria para sua ronda em vinte minutos. Desci mais dois andares. Lá
embaixo, em cima de uma árvore, muito bem escondido, estava John. Avistei o
duplo flash de luz que ele disparou para o alto, informando que estava tudo
conforme o planejado até o momento. ‘‘Até o momento’’. Suspirei. E que assim
continuasse. Tirei de um pequeno saco alguns pedaços de carne, temperados
especialmente com medicamentos que fazem qualquer animal dormir na hora. Eu não
mataria ninguém, muito menos um animal. Primeiro joguei uma pedra qualquer,
como tantas que havia no jardim para não levantar suspeita dentro do quintal,
chamando a atenção dos cachorros. Assim que eles vieram, vorazes, joguei os
pedaços de carne e esperei, calmamente, o remédio fazer efeito, enquanto o
vento me balançava de um lado para o outro.
Olhei no relógio. O guardinha era eficiente, não atrasou nem um minuto
em sua ronda. Graças a Deus não reparou na sonolência dos cachorros, presumindo
apenas que estava tudo calmo demais, e foi embora quinze minutos depois. Agora
era hora! Acionei o pequeno dispositivo grudado na minha cintura, o misturador
de sinais eletrônicos que confundiria o alarme, e, a partir daquele segundo, o
relógio estava contra nós. Soltei os cabos rapidamente e desci de forma
profissional. John piscou a lanterna mais duas vezes, indicando área limpa e eu
corri ao seu encontro. Mal nos olhamos, apenas acenamos com a cabeça um para o
outro e pulamos o muro. Entrar foi fácil, e que Deus nos ajudasse na hora da
saída. Olhamos para todos os lados, apreensivos, mas apenas as corujas piavam
na noite silenciosa e fumaça saía das nossas narinas pelo frio.
-- Vamos.
Corremos até a porta da casa. Ao lado da porta estava o teclado numérico
e o leitor de digitais.
-- É com você.
Enquanto ele pegava um aparelhinho do bolso, fiquei observando tudo a
nossa volta. John era rápido, e nos poucos segundos em que ele ficou esperando
que o misturador de sinais cumprisse sua função de burlar o sistema, me peguei
admirando-o.
Assim que meus pais foram assassinados, me vi sozinha com tia Beatriz. Era
meio solitário, só nós duas, mas melhorava quando o namorado dela aparecia e me
trazia doces. Ele era um cara bacana e tinha um filho, apenas dois anos mais
novo do que eu. Beatriz nunca pode ter filhos e aceitou John como se fosse seu
próprio sangue, assim como também me criou. Quando eu chorava a noite com
saudade dos meus pais, era John quem dormia abraçado comigo. Em todo o caso,
ele era irmão e, principalmente, meu melhor amigo. De algum modo, nunca mais
fui totalmente sozinha. Crescemos juntos, brincamos juntos, levamos broncas
juntos e nunca nos separávamos. Ele era um gênio em informática, e eu era
detalhista e aventureira. John era a única pessoa que me conhecia. Eu me tornei
uma pessoa fechada demais com os acontecimentos fatídicos. Reviravoltas a
parte, ele sempre me apoiou em tudo, até mesmo em minha vingança. Ele sabia da
maioria dos planos e ideias. E agora, tantas loucuras depois, estávamos aqui,
roubando!
-- Pronto!
Escutei o clique da porta se abrindo. Ele sorriu pra mim e eu baguncei
seu cabelo.
-- Menino esperto!
Entramos na casa e avistamos apenas escuridão. Pouca luz entrava pelas
janelas cobertas por pesadas cortinas. Cada passo dado, não importando o cuidado
que tomássemos, era um ruído ecoado no silêncio. Andamos rumo às escadas. Palavras
não eram necessárias, havíamos estudado a planta da casa durante semanas.
Entramos no quarto. Por que as pessoas insistiam em deixar os cofres nos
quartos?
-- A caixa para desativar o alarme do cofre está dentro do banheiro. –
Disse acenando com a cabeça para que ele fosse pra lá.
-- Já sei onde está! Esqueceu que fui eu quem colocou tudo isso aqui?
Sorri com a ironia dos fatos. Estávamos burlando o nosso próprio sistema
de segurança. Seria mais fácil desativar os alarmes da casa através do nosso computador central? Seria. Porém, isso deixaria rastros digitais no sistema e levaria até nós como donos da empresa. Para manter as aparências era importante que tudo parecesse um roubo "tradicional".
Enquanto esperava, observei um enorme quadro pendurado em cima da lareira,
de frente para a cama. Era um retrato do casal, ambos sorridentes, mas o que me
chamava a atenção era o lindo colar de perolas, enfeitado com um único
diamante, no pescoço da mulher. Aquele era o motivo pelo qual nós estávamos
ali. Ele valia ouro, ou melhor, muito mais.
Aquele quadro, tão romântico, era uma farsa. A verdade é que ele traia a
esposa com, pelo menos, duas mulheres diferentes e desviava milhões do governo
através dos impostos. E ela fingia ajudar crianças carentes, mas extraviava
verba o suficiente para se manter afundada com drogas até o nariz, literalmente.
Tudo muito bem camuflado. O dinheiro camuflava muitas coisas.
Dei mais uma boa olhada na pintura, pois um detalhe quase imperceptível de tão pequeno chamou minha atenção. Um anel de ouro brilhava no dedo do
homem. E, apesar de ainda estar babando no colar, meu coração disparou dentro
do peito. O brasão estampado no anel era familiar demais para que eu pudesse
ignorá-lo. MF, aquelas siglas, eu conhecia bem o significado delas. Prendi o ar
e um flash de memória me assombrou. O grito do meu pai. O choro desesperado da
minha mãe. A marca que ficaria para sempre na pele deles e em minha memória.
Solucei. Balancei a cabeça fortemente tentando, em vão, tirar aquela imagem que
nunca saía da minha cabeça.
-- Pronto! Pode abrir o cofre! -- Escutei John gritando do banheiro.
Me aproximei ainda mais do quadro e passei o dedo sobre a pintura do
brasão. Eu estava tremendo.
-- Anda logo! Só temos mais dez minutos.
Essa pequena informação conseguiu me arrancar do meu transe. Dez
minutos. Nossa! Como o tempo voava quando se estava em perigo. Ignorando a pintura sobre minha cabeça, caminhei
rumo ao cofre e tentei abri-lo devagar, apreensiva. Ele rangeu um pouco, mas acabou
abrindo sem dificuldades. Respirei aliviada. Lá dentro, em uma caixa
transparente, estava o colar repousando sobre um veludo. Meus olhos brilharam!
A peça já tinha um próximo dono. Vinte milhões. Minhas mãos tremeram na ânsia.
Fui ávida rumo ao cofre, mas assim que minha mão atravessou o primeiro
milímetro para dentro do compartimento, algo inesperado aconteceu. Um alarme
soou, tão estridente que quase me deixou surda. De onde ele vinha ou o porquê
eu não tinha a mínima ideia. Peguei o colar no susto e joguei dentro da
bolsinha na minha cintura.
-- O que está acontecendo? – Gritei desesperada! – Você não desligou a
porra do alarme?
-- Desliguei! – John veio correndo tão desesperado quanto eu.
-- Então o que aconteceu?!
-- Esse outro alarme não estava na planta! Não é um dos nossos. Eu juro!
-- Droga! Temos que resolver isso agora!
Começamos os dois, correndo contra os segundos, a procurar uma caixinha
metálica naquele quarto imenso. Eu estava soando frio, como sairíamos dali com
aquele alarme ligado? Não queríamos a polícia atrás de nós tão rápido assim!
Segundos depois, eu gritei.
-- Ali! Dentro da lareira!
-- Como você foi burra! Ele estava bem embaixo de você!
Erro meu, de fato, mas o quadro e o símbolo presente nele roubaram toda
a minha atenção.
-- Cala boca, moleque, e desativa esse caralho logo!
Com os dedos ágeis, John resolveu o problema em um minuto. Um novo
recorde. O barulho cessou, mas outro barulho começou no mesmo instante. Sirenes
policiais.
-- Tem policias lá fora! Corre!
Coloquei uma réplica falsa dentro do cofre, no mesmo lugar em que o
original estava poucos minutos atrás e fechei o recipiente. Dei uma última
olhada no quarto e, principalmente, no quadro. Meus olhos tentaram gravar o
desenho daquele anel antes de sairmos correndo rumo à biblioteca da casa. Mesmo
no escuro, a planta gravada em nossa memória nos guiava pelos corredores.
Levantamos o tapete caro e pesado que ficava no meio do ambiente, e puxamos a
alça do porão secreto.
-- Rápido! Entra! – disse John.
Ele ainda teve o cuidado de arrumar o tapete de um modo que, assim que
fechássemos o alçapão, ele cairia sobre nós. Não ousei ligar a lanterna, apenas
o visor do minicomputador de bolso de John nos iluminava na escuridão. Prendi a
respiração assim que escutei passos e vozes dentro da casa. Uma revista foi
feita, cômodo por cômodo, por dois policias.
-- Tudo limpo aí em cima?
-- Limpo! Deve ter sido alguma falha do sistema!
-- Verificou bem embaixo das camas?
-- Que tipo de ladrão hoje em dia se esconderia embaixo da cama?
-- Sei lá! De qualquer modo, precisaria ser muito ninja para passar
pelos dois cachorros lá fora. Um deles quase arrancou minha perna.
Estávamos salvos lá embaixo, escondidos, enquanto os dois homens jogavam
conversa fora, mas ainda sim, suávamos de nervoso. Com os minutos as vozes
foram sumindo. Esperamos trinta segundos a mais depois que eles se silenciaram,
apenas por segurança. Devagar, com todo o cuidado, John começou a abrir a porta
do porão, espiando lá fora.
-- Barra limpa!
Dei apoio para ele pular para fora e logo depois ele me puxou pelo
braço. Nos olhamos aliviados.
Corremos até a sala e John jogou mais alguns pedaços de carne para os
cachorros. Enquanto esperávamos o efeito dos tranquilizantes, eu me apoiei em
uma mesinha de canto e tentei afastar as memorias terríveis que teimavam em
tomar conta de mim desde que eu vira aquele quadro.
-- Engomadinhos espertos. O alarme de movimento dentro do cofre é suíço.
Nossa equipe não sabia dele, por isso tivemos esse imprevisto. Mas ainda bem
que eu sou ótimo no que faço, não é mesmo?
Apesar de ouvir a voz do meu irmão, eu não conseguia raciocinar direito.
Eu estava realmente na casa de um dos homens responsáveis pela morta dos meus
pais?
-- Anita? – John me chamou. Voltei à realidade. Droga. Eu estava
tremendo mais forte agora.
-- Oi?
-- Vamos?
-- Aham. – Mas não movi um passo.
-- O que você está fazendo?
-- Eu... – Minha voz não saía, e eu tive medo de vomitar a qualquer
momento.
-- Vamos embora ou os cachorros vão acordar! Anda! – Disse ele puxando
meu braço. Despertei daquele estado letárgico ao escutar os cachorros começando
a bufar lá fora.
-- Vamos.
E dando uma última olhada para a casa, saí correndo rumo à noite
cinzenta.
Já dentro do carro, segura e aquecida, meu bolso estava tão pesado
quanto a minha cabeça. Apertei as têmporas com as pontas dos dedos, na
tentativa de fazer parar aquela dor insuportável.
-- Conseguimos, mana! – John disse dando pequenos pulinhos no banco.
-- É... Conseguimos. – Mas, como sempre, não havia emoção em minha voz.
-- Você tem ideia de que esse foi o roubo mais difícil do ano?
Provavelmente um dos mais difíceis de todos que já fizemos?
-- Sim, John.
-- Então por que essa cara?
Lembrei do retrato, do anel, do símbolo, dos meus pais e da minha vingança.
Eu poderia ficar o resto da noite falando sobre isso, mas era melhor não.
Aquele era um peso meu, eu não precisava encher mais ainda a cabeça de John.
Ele já me ajudava demais.
-- Nada. Tô com fome!
-- Sua leãozinho. Vamos! Te pago um sanduíche com fritas que você tanto
adora.
-- A gente merece! – disse ligando o som e voltando novamente para meus
próprios pensamentos.
-- É. Você vai mesmo tirar um ano de férias?
-- É... Pode-se dizer que sim...
-- Como assim?
-- Você sabe o que estarei fazendo.
-- Você sabe onde está se metendo, certo? – Disse ele no mesmo tom de
repreensão de sempre.
-- Sei. – disse com a mesma indiferença.
-- Você é louca!
-- Descobri o que significa MF.
-- Sério? – Dessa vez ele pareceu curioso.
-- Sim.
Depois de um tempo me olhando e eu em silêncio, ele disse.
-- E então? Fala logo!
Dei um sorriso. Sabia que ele não aguentaria muito tempo, curioso como
era.
-- Maleficus.
-- E...
-- E isso é o nome da máfia, seu idiota! As siglas são o símbolo que
eles usam para marcar, a ferro, suas vítimas.
John sempre perdia a razão quando eu falava da máfia. Ele tinha medo. Na
verdade, qualquer pessoa com um pingo de senso teria medo, mas eu não. Afinal,
eu não tinha nada a perder.
-- Eles podem acabar com você! – Ele disse com raiva.
-- Eles JÁ acabaram comigo. – Disse com a mesma calma de sempre.
Suspirei. Ter que sempre me explicar sobre aquele assunto me deixava
exausta. Ninguém entenderia, nem mesmo meu meio irmão. Eu estava sozinha nessa.
John não disse mais nada, apenas me olhou feio. Olhei para ele e lhe baguncei o
cabelo, pela segunda vez na mesma noite.
-- Desmancha esse bico e acelera! Ou vou cortar sua pancinha e comer ela
mesmo!
-- Eu não tenho pancinha!
-- Se você insiste...
-- Sua idiota!
Ri dele. Ele tinha essa habilidade de me fazer rir, mesmo sendo algo tão
raro.
Abri a janela e deixei o vento bater em meus cabelos. O sol começava a
querer aparecer no horizonte e os primeiros raios tingiam o céu, ainda meio
azulado, de laranja. John estacionou o carro no posto de gasolina mais próximo.
Ele pediu que o frentista enchesse o tanque enquanto iríamos comer algo no bar ao
lado. Vi uma mulher saindo da loja de conveniência com uma jaqueta de couro
fina demais para aquela noite e um café na mão. Ela estava encolhida pelo frio,
caminhando em direção ao seu carro, quando nossos olhares se cruzaram. Ela
tinha olhos muito bonitos e reparei que seus cabelos estavam presos em um coque
mal feito.
-- Ah, comida! – Disse John trazendo minha atenção de volta. Dei uma
última olhada para trás antes que meu irmão fechasse a porta do estabelecimento
atrás de nós.
Jessy kd vc? estamos c saudadessss...ANE E ANITA SAO LINDASSS
ResponderExcluirHistória incrível.
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