Você estava morrendo, e eu não podia fazer nada.



Doeu saber que eu estava superando você. Doeu como a morte dói nos que sobrevivem perceber que o seu fantasma não me atormentava mais com a força de antes; pois até mesmo a sua assombração me confortava. Alguma coisa sua, mesmo que terrível, vivia em mim, e de alguma forma, você ainda estava presente na minha vida. Meus olhos se arregalaram na primeira vez que senti o gosto da comida depois de muito tempo. E eu achei estranho quando sorri sem desejar que fosse você o motivo do meu sorriso. Ver você partir da minha vida foi duro, mas mais difícil ainda era perceber que agora você estava indo embora de dentro de mim. Você não estava mais em pé na minha frente me dizendo que eu era uma derrotada. Você estava encostada na parede, jogada e morrendo. Sangrando, apesar de eu ter certeza de que aquele era o meu sangue. Solucei sozinha, pesarosa. Eu não queria deixar você ir embora. Eu estava tão acostumava com a sua voz ecoando na minha cabeça. Nos momentos de choro debaixo do chuveiro, o seu fantasma estava sempre ali do meu lado. Por meses o seu espectro me acompanhou o tempo inteiro. Na faculdade, no parque, no barzinho junto com amigos e, principalmente, na hora de dormir. Você era o meu pesadelo, o meu carrasco, e a minha dor mais aguda, mas ainda sim, era você! E isso por si só me bastava (apesar de eu odiar confessar isso). Com o seu assombro eu estava sempre tão solitariamente acompanhada. A sua lembrança latejante aqui dentro me destruía e me confortava, e uma parte fraca demais dentro de mim se recusava a deixar você ir embora. Mas tudo o que eu precisava era que você fosse. Dei outro soluço enquanto percebia os seus olhos perdendo o brilho em minha frente. O seu fantasma estava quase transparente, e o cômodo sem a sua presença ficou assustadoramente vazio. Enterrar você era o mesmo que desistir. Aceitar, de uma vez por todas, que não havia mais nada pra se fazer, pois você não voltaria. Seria abdicar da luta. Abrir mão da batalha. Começar a desejar outras coisas que não seria você. Um assassinato duplo! O seu e o da minha esperança. Eu estava ficando sozinha, e teria que aprender a lidar comigo mesma. Não havia dúvidas de que eu precisava que você perdesse a vida aqui dentro para que eu pudesse reconstruir a minha. Mas não, meu Deus, como doía! Dar adeus a sua lembrança era ter que sorrir sem peso, dormir sem remédios, e acordar sem mágoa. Seria ter que continuar sem você, e eu estava tão acostumada a ser o que você queria. Mas já fazia dias que eu precisava me lembrar de lembrar de você, e isso estava se tornando recorrente demais para eu pudesse ignorar. Às vezes eu trombava com o seu fantasma na esquina e percebia como eu tinha me esquecido de você. Passou-se dias e só então eu percebi que na noite anterior eu não olhei o celular pra ver se tinha algo seu. Quando dei por mim, eu estava escrevendo um texto novo, algo leve e suave do qual você não fazia parte. Caramba! Eu estava mesmo te esquecendo! Dei uma pausa na escrita do meu livro, aquele que eu jurava que nunca mais conseguiria sem você, e me ajoelhei sobre o seu borrão quase sem vida. Te olhei uma última vez e me debulhei em lágrimas. Eu não tinha mais desculpas agora. Como seria acordar e ter que viver? Não ter mais como dizer que você estava ali me tirando os prazeres do mundo. Você estava morrendo, e eu não podia fazer nada. Sussurrei mil desculpas ao seu ouvido. Pedi perdão por ter aprendido a viver sem você, mesmo sabendo que o seu eu de verdade sempre vivera, e ainda vivi, muito bem sem mim. Perdão por ter saído noite passada e me divertido sem sentir sua presença; antes sempre tão presente. Fechei os seus olhos quando eles perderam, finalmente, a vida. Deixei o seu fantasma se dissipando naquele canto, apaguei a luz e chorei sozinha. Não quis encarar os seus restos por muito tempo, eu ainda não tinha certeza se você ressuscitaria. Apesar do meu pesar, eu desejei que você não o fizesse, pois eu precisava seguir. Você continuou silenciosa durante a madrugada toda e meus tremores logo deram lugar ao sono. Amanhã eu acordaria de luto pela sua morte aqui dentro, não nego. Mas acordaria orgulhosa de mim mesma e ansiosa pela vida que me aguardava lá fora.

0 comentários:

Postar um comentário